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“Eu já stopei”: expressões de uma infância bilíngue

  • Foto do escritor: Daniela Cabrera
    Daniela Cabrera
  • 3 de out.
  • 2 min de leitura
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Para resguardar a identidade da aluna, chamaremos de Esmeralda a criança protagonista deste relato, cuja experiência traz importantes aprendizados sobre a vivência bilíngue na escola.

Na época, Esmeralda tinha 4 anos e havia acabado de ingressar em uma escola internacional. Lá, havia a orientação de falar estritamente em inglês com as crianças — o que, anos depois, compreendi que, para lidar com sujeitos bilíngues, é necessário haver flexibilidade em relação às línguas, especialmente em situações que envolvem resolução de conflitos. Naquele contexto, entretanto, seguíamos à risca as diretrizes metodológicas do colégio.

Confesso que essa escola ocupa um lugar especial no meu coração, pois foi onde me constituí como educadora, passando da função de auxiliar de classe bilíngue até chegar a professora titular dos meus queridos K4’s.

Esmeralda era uma criança “fora da curva”: dizia o que pensava, extremamente criativa e corajosa, sem medo e sem controle inibitório.

Todos os dias, acolhíamos as crianças nos Territories, um momento compartilhado do K3 ao K5. Após esse momento, as crianças organizavam os contextos, guardavam os materiais não estruturados da sala e retornavam para seus grupos de referência. Construímos ali um coletivo muito potente: as crianças circulavam com autonomia e liberdade.

A convivência com diferentes nacionalidades, confesso, ajudava a equilibrar um pouco a bolha que a cultura brasileira — reforçada pelos próprios pais — frequentemente impõe às crianças: não corre, não sobe, presta atenção, me dá a mão, eu te visto, eu faço por você... Nesse espaço, ao contrário, tínhamos uma comunidade que compreendia os processos infantis e validava nossas ações como educadores.

Certa vez, eu aguardava meus K4’s na sala de referência. Aos poucos, eles chegavam, lavavam as mãos, bebiam água e se organizavam no circle para iniciarmos a rotina diária. Esmeralda, como de costume, foi a última a descer a rampa. Eu a via pelo vidro, falando alto seus pensamentos. Nessas falas, produzia uma língua que não era nem português nem inglês, mas sim a linguagem de quem está imerso em um processo de compreensão.

Se eu pudesse transcrever, seria mais ou menos assim: “oh, no, lasta, dear, yes, claro”, misturado a outros sons indescritíveis.

Todos já estavam em roda, quando Esmeralda parou na porta da sala, movimentando-se como se estivesse estacionando uma bicicleta imaginária. Nesse dia, porém, ela parecia decidida a me desafiar: olhou-me fixamente nos olhos e continuou em sua criação linguística, até que um colega disse:

Esmeralda, stop!

Ao que ela, na inteireza de um sujeito bilíngue, respondeu com firmeza:

Eu já stopei!

Essa cena revela algo muito comum: sujeitos bilíngues translinguam e mesclam as línguas para se expressar. Não há certo ou errado, especialmente quando falamos da construção da linguagem. Nosso olhar adulto tende a segmentar, julgando que, se a criança não diferencia o português do inglês, está confusa. Mas, na verdade, ela não está confundindo, está criando sentidos. Um cérebro bilíngue se constitui independentemente da língua usada.

Com o amadurecimento do controle inibitório, a criança passa a regular melhor quando e como usar cada idioma. Mas, até lá, é importante não julgar: já ouviu alguém bilíngue misturar inglês e português e pensou que fosse “erro”? Repense. Essa mistura não é apenas comum, mas parte fundamental do processo de desenvolvimento linguístico.

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